sexta-feira, 9 de março de 2012

RESENHA DE TEXTO: "CIDADANIA E CLASSE SOCIAL"

Série acadêmica

RESENHA do capítulo “Cidadania e Classe Social”, p. 57-87. MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e “Status”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

O autor desenvolve, no texto, o que ele chama de “hipótese sociológica”, subentendida no ensaio do sociólogo Alfred Marshall, sobre o qual considera que “há uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade (...) o qual não é inconsistente com as desigualdades que diferenciam os vários níveis econômicos na sociedade” (p. 62). A sociedade aceita a compatibilidade entre igualdade de participação na sociedade, ou igualdade de cidadania, e as desigualdades embutidas na estrutura de classes sociais. A relação entre essas duas variáveis é uma preocupação que permeia todo o texto.

Com o fim de se dar início ao estudo, parte-se da seguinte afirmação interrogativa: “parece haver limites além dos quais a tendência moderna em prol da igualdade social não pode chegar ou provavelmente não ultrapassará, (...) limites inerentes aos princípios que inspiram essa tendência” (p. 63), que se baseia na pergunta inicialmente colocada por Alfred Marshall no referido ensaio: “há base válida para a opinião segundo a qual o progresso das classes trabalhadoras tem limites que não podem ser ultrapassados?” (p. 59). Para respondê-las, Marshall faz uma remontagem do desenvolvimento da cidadania – na Europa, berço da sociedade capitalista, em geral, e, em particular, na Inglaterra [1] – até o século XIX, relacionando-o com seu impacto sobre as classes sociais.

A apreciação de Marshall parte de três derivações particulares do conceito de cidadania, quais sejam, os elementos civil, político e social. O direito civil está relacionado ao exercício da liberdade individual e suas variantes, como a liberdade de ir e vir, de imprensa, pensamento e fé, bem como o direito à propriedade, de concluir contratos válidos e à justiça (p. 63). Assim, as instituições que se vinculam aos direitos civis, em função da possibilidade que apresenta o indivíduo em afirmar seus próprios direitos em termos de igualdade com os demais e devido ao encaminhamento processual são os tribunais de justiça. O direito político, por outro lado, remete à possibilidade de participar no exercício do poder político, seja como membro eleito de um dos organismos integrantes do Estado ou como seu eleitor. Desta forma, tem como instituições correspondentes, o parlamento e os conselhos do governo local. Já o elemento social, por fim, refere-se “a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar (...) na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (p. 63-4). A ele estão relacionados o sistema educacional e os serviços sociais.
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Tomando a Europa como referencial analítico, Marshall sustenta que, anteriormente à era moderna, não era possível traçar uma linha clara entre os três direitos, uma vez que as instituições aos quais se relacionam encontravam-se misturadas. Além disso, mesmo quando era possível identificar direitos como os sociais nas sociedades feudais, por exemplo, eles estavam ligados a um “status” que, à época, não representava a igualdade, mas constituía-se, ao contrário, na “marca distintiva de classe e a medida de desigualdade” (p. 64). A situação era diferente nas cidades medievais, onde podiam ser encontrados exemplos de uma cidadania igualitária, mas ainda restritas ao nível local.

Desse modo, o autor assinala que a evolução da cidadania nacional [2], sobre a qual pretende jogar luz, passou por um duplo processo – de fusão geográfica, por um lado, e de separação funcional, por outro. O primeiro, que ocorrera na Inglaterra pelo menos um século antes de sua consolidação na Europa continental, envolveu a transformação das instituições locais em nacionais e permitiu a passagem da análise para um nível analítico mais amplo. A separação funcional, por sua vez, relaciona-se com o desligamento das instituições da sociedade entre si, resultando na formação de tribunais especializados e parlamento sem funções judiciais, bem como a “Poor Law”, uma instituição nacional de direito social, porém administrada localmente.

O processo de evolução da cidadania originou, segundo Marshall, duas consequências importantes. Primeiramente, a separação funcional permitiu que cada um dos direitos seguisse seu caminho, figurando-se como elementos estranhos entre si. “O divórcio entre eles era tão completo que é possível (...) atribuir o período de formação da vida de cada um a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX” (p. 66). Estes períodos devem ser relativizados, evidentemente, pois há entrelaçamento, principalmente entre os dois últimos. Em segundo lugar, houve um distanciamento das instituições com relação aos grupos sociais que elas buscavam servir, em função do seu novo caráter nacional, decorrendo daí a necessidade de se reconstruir o mecanismo de acesso àquelas: cada um dos direitos ligava-se a instituição cujo mecanismo de acesso foi restituído ao longo dos séculos mais ou menos rapidamente, reforçando o “completo divórcio” ao qual Marshall referia-se anteriormente.

A distinção entre cidadania, ou “status”, e classe social é outro elemento essencial na formulação de Marshall. A primeira “é um ‘status’ concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o ‘status’ são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao ‘status’” (p. 76). Quer dizer, a cidadania é a relação do indivíduo com o Estado, a partir da qual são conferidos direitos individuais num movimento em direção à igualdade material ou à cidadania ideal. A classe social, por outro lado, “é um sistema de desigualdade” (p. 76). Relaciona-se com a inserção do indivíduo no mercado de trabalho e, num marco liberal, sua existência é desejável – seja para recompensar o trabalho realizado ou como incentivo para o desenvolvimento. Dessarte, é possível assegurar que a classe social é fundada nas desigualdades econômicas dos indivíduos, ao mesmo tempo em que subsiste como uma reprodutora de desigualdades sociais.
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Cidadania e classe social, para Marshall, por divergirem-se fortemente quanto aos fins, tomaram a forma de conflito entre princípios opostos. A observância de que, no século XX, cidadania e sistema de classe capitalista encontram-se em guerra foi o que trouxe ao autor a preocupação em investigar os impactos de uma sobre outra, e eventualmente entrever algum tipo de compatibilidade. Ainda assim, os termos continuam a carecer de definições mais concretas.

Marshall ocupa-se em realizar uma diferenciação entre dois tipos de classe social que são importantes para o seu estudo. Ele ressalta que o primeiro deles é a classe que “se assenta numa hierarquia de ‘status’ e expressa a diferença entre uma classe e outra em termos de direitos legais e costumes estabelecidos que possuem o caráter coercivo essencial da lei” (p. 76), sendo uma instituição, emergida naturalmente, em seu próprio direito. Trata-se, de certa forma, do sistema de classes do feudalismo medieval, e o autor aponta incisivamente a incompatibilidade deste sistema com as aspirações de cidadania, quando afirma: “Uma justiça nacional e uma lei igual para todos devem (...) enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal, como um direito natural universal, deve eliminar a servidão” (p. 77).

O segundo tipo de classe social, já brevemente tratado acima, não é tanto um produto derivado de outras instituições sociais, mas particularmente dos “fatores relacionados com as instituições da propriedade e educação e a estrutura da economia nacional” (p. 77). Permite-se a mobilidade social, que está relacionada com a participação do indivíduo na economia – via mercado de trabalho – e a possibilidade de sucesso material. A existência desse tipo de classe gera um tipo de desigualdade social “necessária e proposital” (p. 77), ainda que possa se tornar destrutivamente excessiva. Entretanto, sua necessidade sugere que, a princípio, ela não seja incompatível com aspirações igualitárias via “status”. Neste sentido, o autor faz referência a Patrick Colquhoun, que aceita explicitamente a pobreza, apesar de deplorar os indigentes ou os destituídos: “Sem uma grande proporção de pobres não poderia haver ricos, já que os ricos são o produto do trabalho (...). A pobreza, portanto, é um ingrediente indispensável e por demais necessário da sociedade, (...)” (p. 78). O desejo por cidadania e o despertar da consciência social, que acarretaram a – favorável – diminuição da influência das classes, não constituiu um ataque ao sistema de classes, tornando-o, ao contrário, menos vulnerável. Além disso, e particularmente, quando o núcleo da cidadania residia nos direitos civis, a concessão de direitos era necessária para a manutenção de um mercado competitivo e gerador de desigualdades.

Outrossim, os direitos políticos de cidadania “estavam repletos de ameaça potencial ao sistema capitalista” (p. 85), uma vez que Marshall reconhece a importância do exercício do poder político para demandar e se assegurar direitos sociais. Contudo, o que se observou na Inglaterra foi a transferência da reivindicação social da esfera política para a civil da cidadania, via sindicalismo ou “aceitação do direito de barganha” (p. 86).

Tem-se, portanto, que até o início do século XX, momento em que os direitos sociais começam a se efetivar, o desenvolvimento da cidadania tenha exercido pouca influência direta sobre a desigualdade social (p. 87). A ampliação dos direitos sociais constituiu-se num papel decisivo na relação com o sistema de desigualdade, ainda que seu objetivo aparente não tenha sido atacar a desigualdade de renda, mas sim promover a igualdade de “status”.

Por fim, julgam-se importantes dois aspectos da análise proposta por Marshall. Em primeiro lugar, a essencialidade de sua definição de cidadania, em geral, e de sua tipologia dos direitos, em particular. Ainda que o empreendimento do autor não chegue a se constituir numa teoria específica, apesar de certas e dispersas generalizações quanto ao surgimento da cidadania na Europa, suas formulações fornecem ferramentas importantes para a compreensão de fenômenos sociais ao longo da história. Um segundo aspecto a se acentuar é a relação crucial estabelecida por Marshall entre busca por igualdade, por meio da universalização da cidadania, e manutenção de um sistema de desigualdades, produzido pelo próprio desenvolvimento de uma economia de mercado. Ele demonstra que a convivência entre ambos é desejável e necessária dentro da lógica capitalista vigente. Nesse sentido, vale destacar a atualidade de certas questões por ele levantadas, embora a análise tenha sido realizada há seis décadas.
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[1] A Revolução Gloriosa, de 1689, e as guerras civis antecedentes, com conteúdos políticos, sociais, econômicos e religiosos, aplainaram o caminho para a Revolução Industrial na Inglaterra, um século antes da parte continental europeia.
[2] Ao se referir à cidadania “nacional”, acredita-se que Marshall esteja pensando unicamente em termos de configuração territorial. Será desconsiderado, portanto, o “anacronismo” de Marshall, adotando sua visão de nacional como sinônimo de “estatal” para fins deste trabalho.

5 comentários:

  1. Muito interessante sua resenha do texto. De fácil compreensão e observações importantes. Com certeza será de grande valia para estudiosos da área. Obrigado.

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  2. De um texto confuso, você fez surgir uma resenha esclarecedora.

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